Do “operador” ao “solucionador”: o papel do advogado na era da inteligência artificial

Ana Catarina Alencar
Ana Catarina Alencar
Advogada | Especialista em Direito Digital e Compliance | Coordenadora da Revista Eletrônica da OAB/Joinville | Professora | Mestre em Filosofia e Teoria do Direito | Especialista em Inteligência Artificial e Direito

Qual o papel do advogado na era da inteligência artificial?

“Advogado 2.0.”, “engenheiro jurídico”, “techno-lawyer” e por aí vai… Quem são os profissionais por trás dessas funções? Como se preparar para as oportunidades das novas carreiras jurídicas digitais?

Neste texto, abordaremos estas e outras questões demonstrando quais são as principais competências tecnológicas e comportamentais do advogado do futuro.

Do tradicional ao Tecnológico no Direito

Tradicionalmente, o profissional do Direito foi visto como aquele sujeito conhecedor de um grande número de artigos de lei, dotado de retórica jurídica e com um linguajar muitas vezes enigmático para maioria das pessoas. Este profissional costumava passar horas debruçado sobre a análise de vários documentos, escrevendo centenas de pareceres e contratos, bem como realizando suas rotineiras idas aos “fóruns”.

Com a transformação digital cada vez mais veloz de nosso tempo, esta clássica figura do advogado está entrando em extinção. Este é, claramente, um dos maiores desafios na cultura jurídica atual.  

No contexto da economia globalizada, da Inteligência Artificial e da inovação não há mais tempo hábil para que esse profissional comprometa dias, semanas e até meses, com a edição de modelos, pesquisas jurisprudenciais, revisão de textos, organização de arquivos, etc. Tudo isso pode ser automatizado gerando economia de tempo, produtividade e receita para escritórios e empresas.

Contudo, é importante lembrar do desafio que o profissional do Direito tem pela frente: entender e atuar neste novo mundo exige novas competências. Isso pode ser perturbador para a maioria dos profissionais jurídicos da atualidade. Em regra, universidades e estágios não preparam advogados para a realidade digital e não dão conta de capacitá-los para as novas posições que surgem no mercado das carreiras jurídicas.

Fato é que, a partir do ponto em que estamos no tempo e no espaço, essa transformação digital não parece ter volta. Ela irá engajar, necessariamente, vários tipos de profissionais do Direito, tanto aqueles que atuarão no desenvolvimento direto de tecnologias jurídicas, como aqueles que serão usuários de ferramentas facilitadoras em seu trabalho.

Transformações Aceleradas no Contexto da Pandemia

Por isso, a projeção atual é de que os profissionais do Direito se depararão com esses novos serviços digitais em algum momento, seja para uma simples gestão interna de departamento jurídico, otimização de busca jurisprudencial, ou até mesmo para a automatização de atividades consideradas mais complexas. 

No Brasil, muito embora grande parte dessas ferramentas já seja popularizada em grandes escritórios e empresas, a pandemia da COVID-19 representou uma situação de força maior que impulsionou a adoção desses softwares de forma ainda mais acelerada.

Em que pese a pandemia seja uma circunstância adversa que escapa ao nosso controle, a mudança de cultura digital provocada em todos os setores e o impacto demonstrado nas relações interpessoais foi gigantesco. Assim, não se trata de uma mudança que é a “nova moda” do momento e da qual seja possível fugir e retroceder.

O “status quo ante” já não mais existe e essa mudança cultural trará ainda mais velocidade a transformação digital em curso, reforçando o argumento segundo o qual os profissionais do Direito deverão procurar adaptar-se a este novo modo de viver e realizar negócios no mercado de serviços jurídicos.

Esta nova situação social consolida a projeção de que a grande massa de profissionais jurídicos deverá ser inserida no mercado de serviços tecnológicos em um futuro próximo e, para isso, são necessárias ferramentas de capacitação.

Neste ponto, é possível vislumbrar o nascer de um novo perfil para o profissional do Direito na era digital: não mais o clássico “operador do Direito”, marcado pela interpretação de silogismos ou da subsunção do fato à norma, mas, de um agente “solucionador” que trabalha criativamente sobre questões legais.

Neste sentido,  não mais o “operador”, pois quem “opera” agora é a máquina, mas, sim aquele profissional que pensa e cria soluções para o Direito e a sociedade na qual está inserido. Isso é possível a partir do momento em que a automatização de tarefas jurídicas burocráticas, repetitivas e técnicas propicia o tempo necessário para que o profissional do Direito possa refletir sobre a sua própria práxis.

Ao invés de trabalhar exaustivamente para analisar todas as cláusulas de força maior em  contratos de uma seguradora, por ocasião da pandemia, este mesmo advogado com apoio de profissionais de tecnologia pode desenvolver uma plataforma que revise as cláusulas, permitindo que ele dedique o seu tempo para refletir sobre as soluções aplicáveis ao negócio. Este é um exemplo concreto desta transformação no modo de atuar do profissional do Direito.

Os Desafios da Cultura Jurídica Tradicional

Importante mencionar que a formação tradicional de grande parte dos advogados é permeada, em regra, pela absorção de conteúdos teóricos, memorização de artigos e textos de lei sem muita conexão com sua aplicabilidade na vida prática e consequências sobre clientes e negócios.

Além disso, profissionais do Direito em geral tendem a ser ensinados a enxergar determinado problema jurídico em termos de “sim” ou “não”, isto é, de uma conduta permitida ou proibida. Ocorre que, na complexidade da sociedade atual, muitos problemas não podem ser resolvidos segundo esta abordagem.

É importante analisar riscos, assumir responsabilidades, pensar coletivamente entre os envolvidos e chegar a soluções que, não raro, sequer serão intermediadas pelo próprio Poder Judiciário. Neste ponto, entram as competências técnicas e comportamentais requeridas do profissional que se proponha a trabalhar no mercado da Inteligência Artificial.

Ter um diploma em Direito ou ser especialista em determinada área de atuação não serão requisitos suficientes para trabalhar neste novo mercado. O profissional do Direito deverá demonstrar uma série de competências tecnológicas e comportamentais para adentrar e permanecer nesta nova realidade.

Isso não quer dizer que uma formação sólida sobre os fundamentos do Direito, normas jurídicas e princípios em geral deva ser abandonada. O ensino sério do Direito, a pesquisa e o viés humanístico são premissas fundamentais de qualquer boa formação. Ocorre que ela deve ser combinada com novos conhecimentos que tornem este profissional sistemicamente integrado ao cenário tecnológico e ao universo de negócios no qual está inserido.

Competências Tecnológicas e Comportamentais do Futuro

Uma das principais competências comportamentais neste sentido é a multifuncionalidade, conferindo ao profissional a possibilidade de realizar várias tarefas que não tenham apenas relação com a interpretação de textos legais. Para tanto, é importante considerar a busca por habilidades ou experiências em empresas de tecnologia  e escritórios que adotem ferramentas tecnológicas.

Além da multifuncionalidade, o profissional do Direito deverá estar atento a sua capacidade de adaptabilidade, tendo em vista que as ferramentas tecnológicas mudam e se otimizam com o tempo. Neste ponto, a busca por conhecimento técnico é fundamental.

Uma competência não muito exigida, porém, altamente recomendável ao ingressante na “advocacia digital” é o conhecimento de linguagem de programação, quando possível. Ainda que não seja um requisito para trabalhar na maioria das empresas neste nicho de negócios, a alfabetização em códigos fornece uma grande vantagem competitiva ao profissional do Direito em algumas posições nas quais a interface com departamentos de TI é maior.

 O profissional do Direito que conheça de linguagem de programação Python ou Javascript, por exemplo, poderá melhor avaliar a arquitetura jurídica de grande parcela das ferramentas existentes e compreender como funcionam. Por conhecer a linguagem do próprio Direito estará apto a aproximar esses dois universos e perceber suas possibilidades e limitações.

Atualmente, várias universidades já oferecem disciplinas e cursos de extensão em linguagem de programação para advogados. Existe uma enormidade de cursos gratuitos desta natureza disponíveis na internet. O importante a considerar é que o profissional do Direito não necessita ser um brilhante programador, um cientista da computação ou um técnico de TI: é necessário agregar conhecimentos básicos que ampliem a compreensão da relação entre o Direito e a Tecnologia. Para isso, não é necessário nenhum aprofundamento tecnológico fora do comum.

Além da multifuncionalidade, da adaptabilidade e da linguagem dos códigos, o profissional do Direito necessita demonstrar participação ativa neste novo mercado. Por isso, é recomendável estar por dentro das mais recentes ferramentas e desenvolvimentos da área, bem como produzir conteúdo de forma atrativa e eficiente nas redes.

Participar de conferências, cursos e interagir com outros profissionais é fundamental. Neste ponto, é importante estar aberto a realizar networking e marketing jurídico, dialogando com diferentes perfis de pessoas e expondo suas ideias sobre como o Direito e a Tecnologia podem caminhar juntos tornando a prática jurídica mais satisfatória.

Por fim, é importante acrescentar no rol de habilidades comportamentais deste novo profissional, a empatia e o pensamento sistêmico. Um do pilares básicos do que hoje chamamos de “design thinking” no universo do Direito, é a capacidade de colocar-se no lugar do outro para compreender qual a melhor solução jurídica aplicável ao problema apresentado.

Este “outro” pode ser um cliente, um utilizador de serviço, uma situação dentro de uma empresa, ou seja, tudo aquilo represente o “lócus” no qual reside o problema em questão. Todas as vezes que o profissional do Direito parte de suas próprias suposições e concepções particulares sobre o problema apresentado, incorre no equívoco de não compreender a melhor solução aplicável, pois esta reside na percepção do outro.  Por isso, a necessidade do outro e sua posição é o que determina a solução a ser adotada. E só é possível adentrá-la por meio da empatia.

Além disso, a empatia está conectada com a capacidade de pensar sistemicamente. Isso implica em considerar todos os elementos envolvidos em um determinado problema jurídico. Não apenas o “sim” ou “não” do silogismo da lei, mas, uma solução que reside no “todo”.

Trata-se de considerar que soluções tecnológicas representam não somente um ganho de lucro e eficiência para determinado setor, mas, podem ter implicações em situações de propriedade intelectual, de responsabilidade civil perante clientes e fornecedores, de potencial vazamento de dados sensíveis de consumidores, entre outros. Pensar sistemicamente no Direito é um “pensar integrado” para se chegar na melhor forma ou no melhor “como” fazer determinada coisa na prática. Essa é uma habilidade fundamental do “Advogado 2.0.”, do “Engenheiro Jurídico”, do “Analista legal de dados”, etc. 

Novas Posições e Oportunidades no Mercado Jurídico Digital

Um profissional do Direito disposto a aprender e se desenvolver neste rol de habilidades estará preparado para atuar na era da Inteligência Artificial. Neste sentido, algumas novas oportunidades profissionais têm sido vistas no mercado, trazendo, inclusive, diferentes nomenclaturas para estes papéis.

Atualmente, existem várias possibilidades nas quais o profissional do Direito pode atuar no mercado de tecnologia. Podemos citar os departamentos jurídicos de grandes empresas que lidam com o campo do Direito Digital, as empresas de tecnologia que desenvolvem softwares jurídicos como as lawtechs, bem como as empresas ou escritórios dedicados a análise e tratamento de dados pessoais e sensíveis que trouxeram a recente figura do “Data Protection Officer” (DPO).

Além dessas, algumas novas posições têm despontado de forma tímida no mercado brasileiro, mas, já bem disseminadas internacionalmente. É o caso do “Engenheiro ou Arquiteto Jurídico”, do “Especialista em Inovação Legal” e das profissões jurídicas chamadas “Híbridas”.

Neste contexto, podemos destacar que todas essas novas oportunidades têm como foco profissionais que possam aconselhar, desenvolver e criar soluções para empresas e negócios focados em inovação digital.

O surgimento dessas posições reforça o argumento trazido até aqui sobre o perfil deste novo profissional. Trata-se de abandonar a exclusiva figura de um “operador” ou intérprete de textos legais, para oferecer um serviço que vá além do texto de lei.  

Além disso, as colocações profissionais emergentes no mercado de trabalho não estão limitadas a uma carreira tradicional como advogado. Há espaço para desenvolver seu perfil, atividades e direcionar os conhecimentos para um determinado setor. É um campo multifacetado e dinâmico, que se distancia da ideia de uma carreira jurídica convencional.

Habilidades Essenciais e Urgentes

O fundamental para o profissional do Direito consiste em agregar habilidades comportamentais, conhecimentos jurídicos e tecnológicos. Atualmente, este perfil ainda é bastante raro e escasso no mercado de trabalho, tornando sua preparação ainda mais urgente e necessária.

            Em conclusão, o “solucionador” de problemas jurídicos é um ser integrado a sua realidade, que não se fecha em um único ramo ou especialidade jurídica, mas, está aberto ao aprendizado contínuo. É alguém imbuído de visão sistêmica dos problemas jurídicos, que segue orientado para resultados e impacto social positivo.

              Trata-se, portanto, de um perfil empático aos valores e necessidades do negócio, bem como da sociedade na qual está inserido. A combinação destes fatores, que em conjunto formam a “essência” deste novo profissional, certamente, é chave para um “solucionador” jurídico de sucesso na era da Inteligência Artificial.

Veja também: 

Crescimento de escritórios de advocacia: a partir da visão de uma startup

A Inteligência Artificial no Poder Judiciário Brasileiro: entendendo a nova “Justiça Digital”

3 Dicas para se tornar um(a) advogado(a) data driven

Inteligência Artificial aplicada à pesquisa jurisprudencial

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