A interpretação da norma jurídica e a formação da jurisprudência
A interpretação da legislação pelo Poder Judiciário, em qualquer época, sempre foi relevante para a aplicação do Direito. Até mesmo em períodos históricos em que ao Juiz cabia apenas o papel de exercer a função de reproduzir fielmente a literalidade da lei [1], sabe-se que, sob uma ótica pragmática, toda leitura, por mais objetiva que seja, comporta, em certa medida, alguma interpretação.
A partir da análise da estrutura e da teoria da norma adotada pelo ordenamento jurídico brasileiro, constata-se que a jurisprudência não é considerada uma fonte primária do direito [2]. No entanto, deve-se reconhecer que ela desempenha papel relevante na interpretação das normas jurídicas e na construção de um sistema jurídico lógico e coerente.
Não há dúvidas de que a jurisprudência tem significativa importância para a estabilização das decisões judiciais e para a preservação da segurança jurídica, inclusive nos regimes que adotam a sistemática do “civil law”, por meio do qual se reconhece a impossibilidade de aplicação da lei sem a sua correspondente interpretação.
O poder vinculante das decisões judiciais: a formação de precedentes
A partir de uma perspectiva histórica da construção de um sistema de precedentes no Brasil, o primeiro passo foi empreendido pelo Código de Processo Civil de 1973, o qual atribuiu relativo poder vinculante às decisões proferidas pelos Tribunais Superiores no âmbito da sistemática dos recursos repetitivos e de repercussão geral.
Todavia, o insucesso da proposta se deu em virtude da incapacidade, sob uma perspectiva prática, de exigir que o resultado dos precedentes fosse observado pelas instâncias de origem, ou mesmo diante da recorrente interpretação e aplicação equivocada do precedente. A tese firmada pelo decisum era comumente citada, sem, contudo, lograr o julgador êxito em se estabelecer um liame fático conclusivo entre a premissa maior (precedente) e a premissa menor (caso concreto).
Neste contexto, com o intuito de corrigir tais distorções, buscou o Código de Processo Civil de 2015 constituir um sistema de precedentes que fosse capaz de conferir às decisões proferidas pelos Tribunais Superiores maior poder vinculativo, através da instituição de mecanismos que permitissem a correta aplicação, operacionalização e vinculação desses mesmos precedentes, como, por exemplo, o Instituto da Reclamação, previsto no capítulo IX, do Livro III, do supracitado diploma legal [3].
Em especial, no que tange ao Direito Processual Tributário, os precedentes têm o importante papel de, diante das mais variadas discussões e casos concretos, preservar a segurança jurídica e a equidade na relação entre contribuinte e o Estado, buscando a estabilidade social e a arrecadação justa para a manutenção das atividades da Administração Pública.
Dos limites e da adequada fundamentação necessária para a construção de precedentes eficientes
O novo paradigma introduzido pelo Código de Processo Civil de 2015, apesar de ter instituído um verdadeiro sistema de precedentes, está condicionado à adequada delimitação da tese em julgamento, bem como à escorreita e exauriente fundamentação utilizada para a construção da ratio decidendi que será replicada em casos futuros.
Neste contexto que a legislação processual civil, ciente de tais limitações, previu no artigo 489, §1º, inciso VI do CPC/2015 [3], dispositivo normativo, cujo texto teve como objetivo a “reafirmação/concreção do artigo 93 da CR/88” [4] ao determinar que “não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento” [3].
Ante ao exposto, uma vez fixado o precedente – bem delimitado e adequadamente fundamentado -, caberá ao julgador, diante do caso concreto, identificar a ratio decidendi do julgado paradigma aplicando-o ao caso vertente ou empreendendo o exercício do distinguishing.
Importante observar que precedentes mal formulados, ou seja, mal fundamentados e, principalmente, mal delimitados quanto à sua abrangência e aplicação, tendem a conferir aos magistrados mais discricionariedade quanto à sua aplicação. Deste modo, conforme muito bem salientado por Patrícia Perrone Campos Mello (2015) [5], caso um juiz não concorde com a decisão proferida pela Corte, e, em se deparando com um precedente mal formulado, tenderá a interpretá-lo de forma mais restritiva.
Portanto, para que um sistema de precedentes seja eficiente, é essencial que o julgado paradigma do qual se extraiu a tese seja em primeiro lugar bem delimitado, ou seja, indique com precisão quais os limites da coisa julgada, fundamentando-o sob uma perspectiva exauriente.
O Distinguishing como mecanismo de controle no sistema de precedentes
Diante da inevitável atribuição de maior cogência e força aos precedentes, bem como da necessidade de motivação das decisões judiciais, a utilização do distinguishing tornar-se-á elemento comum da práxis jurídica, o que demanda o perfeito domínio dos conceitos de ratio decidendi e obter dictum. É nesse contexto que, identificar a ratio decidendi, bem como a abrangência das razões de decidirdos precedentes se tornou um elemento imprescindível para o exercício da advocacia [6].
Assim, por consequência lógica, a fragilidade dos precedentes formados na vigência das legislações processuais anteriores exige a frequente instrumentalização do distinguishing, haja vista que todos os argumentos não abordados na ratio decidendi dos precedentes formados sob uma fundamentação não exauriente, são elementos que o diferem do caso concreto em eventual exame, permitindo a reapreciação da matéria pelos Tribunais Superiores.
Neste sentido, tendo em vista que, em especial, as questões afetas à matéria tributária comportam a análise de inúmeros argumentos, a adequada instrumentalização do Distinguishing é medida que se impõe, a fim de assegurar a coerência e coesão de um sistema de precedentes eficiente.
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Referências Bibliográficas
[1] MONTESQUIEU, Charles de Secondat, Baron de. O Espírito das Leis (1689-1755). Apresentação Renato Janine Ribeiro / Tradução: Cristina Murachco. São Paulo: Marins Fontes, 1996, págs. 167-179.
[2] FERRAZ Jr, Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito. Técnica, Decisão, Dominação. 4ª edição. São Paulo: Editora Atlas S.A. 2003.
[3] BRASIL. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil.
[4] BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
[6] HEIDENREICH, Freitrich A. R. Entraves e desafios à aplicação do sistema de precedentes do novo Código de Processo Civil em relação aos precedentes formados na vigência do Código de Processo Civil de 1973. In: HENRIQUES, Guilherme de Almeida (coord.). Os impactos do novo CPC sobre o processo judicial tributário. Belo Horizonte: D’Plácido, 2016. p. 337-346. Localização: PGR, TJDFT.
[7] CAMBI, Eduardo e FOGAÇA, Mateus Vargas. Sistema de precedentes judiciais obrigatórios no Novo Código de Processo Civil. In: DIDIER JR., Fredie; ATAÍDE JR., Jaldemiro R; CUNHA, Leonardo C; MACÊDO, Lucas B. Coleção Grandes Temas do Novo CPC. Volume 3. Precedentes. Bahia: Editora Jus Podium, 2015.
[8] NUNES, Dierle e HORTA, André Frederico. Aplicação de Precedentes e distinguishing no CPC/2015: Uma breve introdução. In: DIDIER JR., Fredie; ATAÍDE JR., Jaldemiro R; CUNHA, Leonardo C; MACÊDO, Lucas B. Coleção Grandes Temas do Novo CPC. Volume 3. Precedentes. Bahia: Editora Jus Podium, 2015.